O JMC nos deu educação – no sentido mais pleno do termo

[Este artigo, de 2009, tem um título que, em parte, repete o título de outro artigo que escrevi cerca de doze anos antes, em 1997 (“O JMC nos deu Educação”), e que está transcrito aqui também, mais acima. Não devem ser confundidos. O de 1997 é mais pessoal, este, mais fáctico e ao mesmo tempo teórico].

O JMC não era uma simples escola, como as outras.

O JMC era uma escola de vida.

Para começar, era um internato. A maior parte de nós, alunos, morávamos lá – isso quer dizer que vivíamos a nossa vida lá. A maior parte dos professores também. Também os diretores.

As outras escolas em geral se preocupam em encher a mente de seus alunos de informações. O JMC fazia, das cianças e adolescentes que ali chegavam, literalmente gente grande. E não só gente grande do ponto de vista intelectual: gente grande também do ponto de vista emocional, interpessoal, profissional, social, moral – humano, enfim.

Ali aprendemos a pensar com idéias próprias, a argumentar, a defender nossas idéias contra crítica, a criticar as idéias dos outros, a debater questões controvertidas (o JMC não fugia delas)…

Ali aprendemos a entender outras línguas, a nos expressar nelas e a praticá-las em clubes de línguas estrangeiras (clubes de alunos interessados em uma determinada língua, como o English Club);

Ali os professores, se você já conhecia bem o assunto da aula deles, o dispensavam da aula para trabalhar com você em tutoriais individualizados (dona Elza Fiuza Telles, professora de Francês, fez isso comigo durante os três anos que passei lá);

Ali aprendemos a conviver uns com os outros, a gerenciar nossas emoções, a lutar contra impulsos primitivos, a nos conter quando um colega nos fazia uma brincadeira de mau gosto…

Ali aprendemos a amar e a encontrar formas criativas de expressar o amor, para contornar a proibição do namoro…

Ali aprendemos a tomar conta de nossa vida, de nosso quarto, de nossas roupas, de nossos objetos pessoais, de nossos livros…

Ali aprendemos a trabalhar em atividades manuais ou braçais, limpando o chão e até mesmo o banheiro e até a privada, bem como servindo no restaurante,  trabalhando na cozinha, lavando louças, cuidando de nossas roupas…

Ali aprendemos a viver simples e frugalmente, com pouco e, por vezes, nenhum dinheiro, e a compartilhar o pouco que tínhamos…

Ali aprendemos a administrar o nosso tempo, alocando-o conforme nossas prioridades: a vida intelectual e o estudo; a música, o esporte, e o lazer; o amor e a vida social; a contemplação e a devoção…

Ali aprendemos que, de vez em quando, ficar sem fazer nada, deitados na grama, olhando para o céu, tendo apenas nós mesmos como companhia, era algo importante…

Ali aprendemos a ter responsabilidade, a responder por nossos atos – a fazer provas sozinhos no quarto, com os livros e cadernos ao lado, sem sucumbir à tentação de abri-los…

Ali desenvolvemos nosso caráter, que é (como alguém um dia disse) aquilo que fazemos quando ninguém está olhando…

Michael Hammer, o guru da reengenharia, disse, em um de seus livros, citando alguém, que educação é aquilo que fica conosco depois que a gente esquece o que nos foi ensinado.

No caso do JMC, ficou muito conosco. Somos o que somos, em grande parte, em virtude de nossa experiência no JMC.

Educação é isso: é o que resta, depois que a gente se esqueceu do que nos foi ensinado: o amor do saber, o entusiasmo pela descoberta, a fascínio pelo conhecimento, pela cultura, pelas artes, por outras manifestações tipicamente humanas, como esporte, o desejo de sempre aprender mais, o sentido de valor que nos ensina a separar o importante do urgente e a priorizar as coisas, a honestidade e a honradez, a certeza de que a vida vale a pena quando se tem um objetivo pelo qual lutar e se luta por ele sem abandonar os princípios que moldam o nosso caráter. O JMC nos legou tudo isso. O JMC nos deu educação. Talvez a melhor educação de que se tenha notícia neste país.

Por isso, a experiência, ainda que apenas de um ano, no JMC marcou todos os seus alunos.

É por isso que, quarenta anos depois de seu fechamento em 1970, seus ex-alunos ainda se apegam à memória da instituição, querem preservá-la, não conseguem se conformar que ela se perca com a morte, cada vez mais freqüente agora, dos manuelinos. É uma tristeza reconhecer que não existem mais manuelinos com menos de cinqüenta anos, por aí… e que dentro de uns trinta anos, no máximo, provavelmente não haverá mais nenhum manuelino vivo.

Por isso essa obsessão por preservar a memória, contar e registrar a história, para que filhos, netos, bisnetos saibam que um dia houve uma escola contra a qual nenhuma voz jamais se levantou e que todos os que passaram por lá amam com devoção… Há ex-alunos com mais de 90 anos, que amam o JMC com devoção até hoje. E para que saibam, também, e esse o lado negro da história, que a escola foi fechada, quarenta anos atrás, pelo medo – ou, o que é pior, por interesses escusos… E para que saibam que os que estiveram envolvidos no processo ou já morreram ou, se ainda vivos, preferem morrer a revelar o que realmente aconteceu.

Por isso o Museu Presbiteriano, com sede no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, decidiu, neste ano em que se celebram cento e cinqüenta anos do presbiterianismo no Brasil, acolher o pedido da Associação dos ex-Alunos do JMC de fazer uma mostra, no início de 2010, do que foi o JMC. Oitenta e dois anos depois de ele ter sido fundado. E quarenta anos depois de ter sido fechado.

São Paulo, em 3 de Dezembro de 2009

Eduardo Chaves (*)
eduardo@chaves.com.br

(*) Depois de fazer o Curso Clássico no JMC, de 1961 a 1963, Eduardo Chaves estudou no Seminário Presbiteriano de Campinas, SP, do qual foi expulso em 1966, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, em São Leopoldo, RS, que, em 1967, o acolheu, no Presbyterian Theological Seminary, em Pittsburgh, PA, Estados Unidos, onde, sem ter diploma de graduação, obteve seu Mestrado em Teologia (1970), e na University of Pittsburgh, também em Pittsburgh, onde, em 1972, obteve seu Doutorado em Filosofia (Ph.D.), menos de nove anos depois de se formar no JMC.

Eduardo Chaves foi, durante 35 anos, professor universitário. Desses 35 anos, passou 32 anos como Professor (dos quais 26 como Titular) no Departamento de Filosofia e História da Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), da qual se aposentou ao final de 2006.

Na UNICAMP foi Diretor da Faculdade de Educação durante oito anos (quatro como Associado e quatro como Titular) e foi Pró-Reitor para Assuntos Administrativos, de 1984 a 1986.

Em 1986-1987 foi Diretor do Centro de Informações Educacionais da Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo, e em 1987-1990 do Centro de Informações de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo. Em 2007 foi Secretário Adjunto de Ensino Superior do Estado de São Paulo.

De 2007 a 2009 foi Presidente do Instituto Lumiar, e atualmente é membro do Conselho da Aliança Francesa de Campinas, do Programa EducaRede da Fundação Telefônica, e do Instituto Crescer para a Cidadania, os últimos dois com sede em São Paulo. É, também, desde 2003, membro do International Advisory Board do Programa Partners in Learning da Microsoft Corporation, com sede em Redmond, WA, EUA.

Ele mora em Salto, SP (onde pode ser contatado através da Caixa Postal 52, Agência Central dos Correios, 13320-970, Salto, SP).

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9 thoughts on “O JMC nos deu educação – no sentido mais pleno do termo

  1. Que bom!… conhecer um pouco mais da sua história muito bem escrita e entender porque convivi com algumas pessoas citadas e mesmo você quando veio passar umas férias em Cuiabá, tive a oportunidade de estar trabalhando na escola Bíblica de Férias.

    Eu estudei em Buriti em 1960, junto com a Natalie.

    • Nossa vida, Elizabeth!!! Você escreveu quatro anos e meio atrás e só agora eu vi o seu comentário. Lembro-me muito bem de minha estada em Cuiabá. Quanto à Natalie, ela está no Brasil no momento. Vou deixar uma notinha no Facebook para ela acerca de você.

  2. Oh, meu irmão… Só hoje estou lendo esta mensagem com muita alegria… Passei uns meses afastada do serviço e saí de um câncer no intestino mas, pra Glória do Senhor, estou curada e voltei ao trabalho nesta semana e dentro em breve já vou aposentar… Louvo a Deus por tudo… Ele continua Poderoso…. Maravilhoso… O Senhor é Bom.

  3. Cara Elizabeth: que bom receber sua mensagem e saber que você está bem. Continue visitando este blog. E visite também a nossa página no Facebook, onde há várias discussões com os amigos manuelinos, fotos, choradeira de saudade, etc. O endereço é:

    https://facebook.com/institutojmc/

    Diga, por favor, quando você estudou no Jota, onde está morando agora, etc. Seus colegas gostarão de saber disso.

    Abraço.

    PS Desculpe demorar para responder. Só agora consegui instalar um macete para ser informado de cada comentário através de e-mail. Assim, espero não me atrasar em comentar, não.

  4. Bom dia…

    Graça e paz do Senhor…

    Eu estudei em Buriti em 1960…

    Naquele ano estudavam lá: Getúlio da Guia, Elias Ferreira, João Azevedo, Jandira Oliveira, Silvia Rezende, Erlita Goulart, Zaida…

    Nossos professores: Luzinete Mello, Raimundo Passos, Aldemar Machado…

    Direção do Rev. Chalmers Browne e de Dona Paulina

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