[De Émile-G.Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social, tradução do manuscrito original em francês por Linneu de Camargo Schützer, ASTE, São Paulo, SP, 1963, pp.56-58]
José Manuel da Conceição [1] foi o homem que abriria ao protestantismo o interior do Brasil — conquistando não apenas indivíduos isolados mas famílias extensas e sólidas —, assegurando, assim, seu estabelecimento, foi um padre. Esta particularidade — que nos reconduz à época da Reforma e às facilidades que ela encontrou no ministério sacerdotal de um Zwinglio e muitos outros — corresponde também àquilo que fôra o sonho de Feijó: a reforma da Igreja brasileira por um padre brasileiro.
Nascido em São Paulo em 1822, José Manuel da Costa Santos, que tomou o nome de José Manuel da Conceição, tornou-se padre em 1845, após brilhantes estudos realizados em Sorocaba, onde seu tio-avô era cura, e no seminário diocesano. As relações que teve bem cedo com estrageiros protestantes, entretanto, o gosto pela leitura da Bíblia que estes lhe inspiraram, a tradução alemã de uma História Sagrada do Antigo e Novo Testamento publicada pela editora protestante do Rio, Laemmert, mas sem a autorização episcopal, valeram-lhe, em pouco tempo, a alcunha de “padre protestante” e a suspeita da autoridade diocesana. Esta mantinha-o nas funções de vigário encomendado, enviando-o durante quinze anos a uma dezena de paróquias, Limeira, Piracicaba, Monte-Mor, Taubaté, Ubatuba, Santa Bárbara e, finalmente, Brotas, para onde foi transferido em 1860. Os bispos protegiam, assim, seus fiéis, contra uma influência que, sendo exercida durante muito tempo, pensavam, tornar-se-ia nociva; mas, como se afirmou, “sem que o percebessem, traçavam o itinerário da Reforma na sua diocese”.
Esta má vontade por parte da hierarquia mostrava ao Pe. Conceição a impossibilidade de realizar esta reforma da Igreja no plano local, ao qual se consagrava, procurando, em cada uma de suas paróquias, reavivar a vida espiritual, centralizando-a na leitura da Bíblia. Conhece profundas crises vocacionais que ajuntaram ao seu cognome “padre protestante” o de “padre louco”. Parece que Brotas, por algum tempo, restituiu-lhe a paz. Essa povoação recentemente fundada (datando de cerca de 1840) era povoada por pequenos fazendeiros, grande parte vinda do sul de Minas, os Gouvea, os Cerqueira Leite, os Garcia, os Lima. Pessoas ativas, decididas e progressistas, aprovaram sem dificuldade a construção de uma nova igreja e a substituição da velha imagem da padroeira do santuário Nossa Senhora das Dores. Conceição pregou-lhes a leitura da Bíblia, e conta-se que um velho, havendo descido com enorme esforço da serra, para se informar sobre o que havia, respondeu: “Então vou aprender a ler para estudá-la”, e o fez. Às noivas que procuravam confessar-se antes de seu casamento, Conceição respondia: “Eu e você precisamos nos confessar a Deus e não aos homens”.
Este episódio nos mostra que, nesse mês de março de 1862, ele procurava apenas melhorar as condições da vida religiosa na sua paróquia. Passava por uma profunda crise espiritual, exatamente a da questão da salvação e do valor meritório das obras. Como Lutero, condenava as indulgências que proporcionavam uma falsa paz, acusando a Igreja pelo seu “sistema de comutação” que “implica e explica a negação da graça de Jesus”. Não lhe sendo possível continuar no exercício do ministério, quis abandoná-lo, tendo sido, por sua vontade, dispensado apenas de suas funções propriamente sacerdotais, após o que foi viver como simples particular, em uma pequena casa de campo nos arredores de Rio Claro. Aí foi encontrá-lo o missionário Blackford, atraído pela fama do “padre protestante”. Este acabou por ceder às suas exortações, batizando-se na Igreja Presbiteriana do Rio em 23 de outubro de 1864. Sua decisão, entretanto, também não lhe proporcionou a paz interior. Nova crise manifestou-se nele, em virtude da advertência bíblica “Não se zomba de Deus”, crise que provinha de sua consciência de que não era bastante haver abandonado os erros da Igreja roamana, depois de havê-los divulgado por tanto tempo. Três vezes evitou seus amigos missionários, subtraindo-se às syas visitas, até que, finalmente, estas outras palavras da Bíblia “O sangue de Jesus Cristo purifica de todo pecado” trouxeram-lhe tranqüilidade ao coração. Escreveu então uma Profissão de Fé Evangélica onde narra suas lutas espirituais, num estilo convulsivo e ardente, uma das mais belas obras da mística protestante [2]. Protestante pelas experiências e afirmações dogmáticas nas quais repousa, guarda ela profundamente, entretanto, o tom da literatura espiritual e da piedade católica. Neste ponto, como veremos, é o espelho fiel de seu autor.
Brotas fôra a última paróquia onde o Pe. Conceição exercera o ministério católico. Possuia ali lácos familiaries desde que sua irmã mais moça, Tudica, se casara com um Cerqueira Leite. Muitos de seus paroquianos haviam conhecido suas lutas espirituais e alguns as haviam mesmo partilhado. Além disso, os missionários seus amigos haviam iniciado ali um trabvalho de propaganda com grande resultado, e esse foi o ponto decisivo: dirigiu-se a Brotas em meados de outubro a fim de tomar parte na campanha de pregações que deveria realizar-se durante diversas semanas, havendo pregações de casa em casa. Eis uma descrição das duas últimas reuniões, feitas por Blackford, que nos mostra o modo como eram realizadas e como se criou o primeiro núcleo protestante verdadeiramente brasileiro.
[O texto continua por várias páginas mais, até a p.67. Seria muito demorado transcreve-lo por inteiro. O que foi transcrito fica como “aperitivo”…].
NOTAS
[1] Sua biografia foi escrita pelo coronel Fausto de Souza, ligado a ele em circunstâncias memoráveis, como veremos mais adiante. Foi tratada também por Vicente Themudo Lessa, Padre José Manuel da Conceição (2ª , 1935). Acaba de aparecer (1950) um bom estudo feito pelo Rev. Boanerges Ribeiro, onde se encontrará uma bibliografia completa. [Nota de Eduardo Chaves: O livro, que teve o título de O Padre Protestante, foi publicado pela Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, SP, em 1950].
[2] Encontramos grandes passagens desse livro na obra de Rev. Boanerges Ribeiro que acaba de ser publicada, sob o título O Padre Protestante (São Paulo, 1950). [Nota de Eduardo Chaves: o autor não explica porque não citou o nome do livro na nota anterior].
Transcrito aqui em São Paulo, 6 de Novembro de 2016