Memória, Identidade e o “Ser Manuelino”

[Micropalestra que fiz em Jandira, SP, 20 de Junho de 1998, por ocasião de encontro dos ex-alunos do JMC. Eduardo Chaves]

Queridos Manuelinos:

O Takashi me pediu para coordenar os trabalhos aqui hoje (20/6), neste nosso encontro anual (1998) em Jandira (SP). O Gerson Lacerda se responsabilizará pela parte devocional, nós, sem a menor dúvida, vamos cantar, e vamos discutir algumas coisas eminentemente práticas. Mas eu não poderia iniciar esta reunião sem fazer algumas reflexões de natureza teórico-prática com vocês. Parte do que vou dizer já disse antes – na verdade, já venho dizendo há tempo. A outra parte foi se cristalizando na minha mente à medida que pensava em algo interessante para dizer para vocês aqui hoje. Sou filósofo. Por isso minhas reflexões não deixarão de ter um tom meio filosófico.

John Locke, filósofo inglês do século XVII, defendeu a tese de que nossa identidade pessoal é totalmente dependente de nossa memória. Ele argumentou de várias formas em defesa dessa tese. Mas, no fundo, ele achava que a tese era bastante autoevidente. Ele propôs o seguinte “experimento teórico” aos seus leitores. Imaginemos que numa determinada cidade vivam um príncipe e um sapateiro. Eles nunca se encontraram e não se conhecem. Uma bela manhã, entretanto, o sapateiro acorda totalmente sem as suas memórias, mas com as memórias do príncipe, e diz: “O que estou fazendo aqui neste local imundo? E com essas roupas horríveis? Mordomo! Onde você está?” Nada de mordomo. “Rainha, onde você está?” Nada de rainha. No lugar dela aparece a mulher do sapateiro. O príncipe diz: “Quem é você? O que estou fazendo aqui? Onde está meu mordomo?” Etc. (Os diálogos estou inventando, não são de Locke). Por outro lado, o príncipe acorda totalmente sem as suas memórias, mas com as do sapateiro, e também desconhece o local em que está, sentindo-se perdido no palácio, querendo ir embora para sua casa na periferia da cidade. Segundo Locke, se isso acontecesse, nós sem dúvida diríamos que o príncipe e o sapateiro haviam trocado de identidade. Pura e simplesmente.

Há muito a favor da tese de Locke. Quando alguém tem amnésia total, em virtude algum acidente ou de alguma doença, passa, em um sentido importante do termo, a ser outra pessoa. Começa vida nova. Adquire nova identidade. Há um filme de muito interessante de Harrison Ford em que isso acontece com ele, chamado Regarding Henry (de 1991)>

Também há um livro de ficção científica famoso, escrito por Robert Heinlein, em que se defende tese semelhante, I Will Fear no Evil (Não Temerei Mal Algum), em que o cérebro perfeitamente sadio de um velho cujo corpo era mantido vivo por instrumentos, e que era podre de rico, é transplantado para o corpo de uma linda moça, sua secretária. O autor gasta uma boa quantidade de páginas argumentando que o a pessoa que passou a existir no corpo da moça era de fato o velho, que mudou de corpo, adquirindo um novo (e bem mais apresentável!) – porque as memórias preservadas no cérebro transplantado eram as do velho, e, portanto, a identidade que permaneceu deveria ser a sua, a despeito do novo corpo.

Para que tanta discussão desse problema?

Porque estou convicto de que Locke estava certo e que é a memória a base da identidade pessoal. Na verdade, acredito que a memória é também a base da identidade de um povo ou de um grupo. É por isso que os Israelitas tinham que constantemente se lembrar de sua história. Preservar a sua história é manter a identidade de um povo ou de um grupo. Cultivar a memória é uma forma de manter a identidade em uma pessoa. Aquilo que eu esqueço deixa de ser parte de mim, deixa de ser parte de minha identidade.

Algumas vezes no passado me perguntei se ainda era protestante. Hoje não tenho dúvida. O Rubem Alves me convenceu de que sou. Sou, porque fui. Sou, porque vividamente me lembro de ter sido. Ser protestante é parte de minha memória viva, e, portanto, uma parte inextricável de minha identidade. (Vide o artigo do Rubem Alves que transcrevi em meu outro blog, em que ele discute isso: “Confissões de um Protestante Obstinado”, publicado em meu blog Liberal Space, em https://liberal.space/2015/10/07/confissoes-de-um-protestante-obstinado-depoimento-de-rubem-alves/.

Outras vezes no passado me dei conta de que ainda continuava amando as mulheres que amei. Hoje isso não me assusta, mais. Amo, porque amei. Amo, porque vividamente me lembro de tê-las amado. O amor que um dia senti de determinada forma é parte de minha memória viva, e, portanto, parte de minha identidade como pessoa, e, assim, ainda existe, ainda que não se expresse da mesma forma exterior.

Talvez essas considerações expliquem o que sinto pelo JMC – o que todos sentimos, acredito. Não gosto de me rotular, nem que me rotulem, de ex-Manuelino. Sou Manuelino até hoje. Sou, porque fui.

O que me causa espanto é que essa parece ser a experiência de todos os Manuelinos. Há uma surpreendente unanimidade entre os Manuelinos, que é o sentimento terno e carinhoso que mantêm pela escola. Basta olhar as mensagens deixadas no site. Uma vez Manuelino, sempre Manuelino. Somos Manuelinos, porque fomos. Somos, porque essa escola vive em nossa memória como uma das passagens mais importantes da nossa vida. Somos, porque é impossível que alguém realmente nos entenda hoje, num sentido profundo, sem entender o que essa escola significou para nós.

Lembro-me do que me contou o Dorival Xavier, no culto de 7/2/98. Disse-me que imprimiu minha vinheta sobre o JMC e fez cópias para seus filhos, dizendo: “Leiam isso aí, para que vocês saibam o que significa ser Manuelino”. Senti-me mais ou menos assim como deve ter se sentido o escritor sagrado, contando a história do povo de Israel, para que as novas gerações não perdessem a sua identidade.

A última turma a cursar o JMC o fez cerca de trinta anos atrás, em 1969 ou 1970, não estou bem certo. É possível que daqui a 50 anos não haja mais nenhum Manuelino vivo. A MENOS QUE ser Manuelino passe a ser mais um estado de espírito do que uma condição histórica. A MENOS QUE ser Manuelino passe a ser assim algo semelhante a ser Judeu, que mesmo sem ter nascido na Palestina, mesmo sem pátria, no exílio ou na diáspora, continuou a ser Judeu – porque se lembrava do Senhor seu Deus que o tirou da terra do Egito.

O nosso esforço com esta nossa Associação, como eu disse na abertura do site do JMC na Internet, é não permitir que a memória do JMC se perca, é preservar a memória, e, portanto, preservar a identidade do Manuelino – e, de certo forma, dar continuidade à raça, mesmo que de forma virtual.

Hoje, com computadores, grande parte da nossa memória está armazenada não no nosso cérebro, mas em meios magnéticos. Nossos computadores hoje passam a fazer parte de nossa identidade. O mesmo se dá no caso do JMC. O site do JMC na Internet é indispensável para a continuidade da raça. Como é o museu. E muitas outras coisas.

Já resgatamos nosso hino. Hoje temos aqui nossa bandeira, de novo, num trabalho de resgate histórico fenomenal do Takashi. Depois teremos nossas camisetas, nossos agasalhos. Aos poucos vamos recuperando fotos, histórias, objetos. Essas coisas são importantes, contudo, apenas pelas memórias que elas evocam e representam.

A esperança, dizia um professor meu do Seminário de Pittsburgh, se fundamenta na memória. Nós somos o que fomos, é verdade – mas somos também o que desejamos e esperamos ser. Nós somos o resultado dessa mescla de lembranças e sonhos, recordações e desejos, memória e esperança. O povo de Israel confiava na vinda do Messias (tinha esperança) porque se lembrava de que, no passado, Deus havia estado ao lado do seu povo (porque tinha memória).

A memória, já temos. Precisamos agora trabalhar para dar corpo ao nosso sonho. É a parte mais difícil, porque a memória é aquilo que foi – mas o futuro está aberto, pode ser o que sonhamos, e os sonhos são muitos, e muitas vezes incompatíveis. Mas é preciso trabalhar para procurar definir um horizonte na direção do qual caminhar.

É por isso que estamos mais uma vez aqui.

Bem-vindos a esse novo encontro dos Manuelinos.

Jandira, SP, 20 de Junho de 1998

Eduardo Chaves

Transcrito aqui em São Paulo em 6 de Novembro de 2015

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