José Manuel da Conceição (por Carl Joseph Hahn)

[O texto a seguir é de autoria de Carl Joseph Hahn e foi transcrito por mim a partir do Capítulo IV do seu livro História do Culto Protestante no Brasil (2a edição, ASTE, São Paulo, 1986 [1a.ed], 2011 [2a.ed]). O capítulo aborda o Padre José Manuel da Conceição e outros. Transcrevi apenas a seção relativa ao Rev. José Manuel da Conceição, primeiro pastor ordenado no Brasil e ex-padre Católico Romano — que deu nome ao JMC. Novamente, pode haver pequenos erros de digitação.]

CAPÍTULO IV

CONCEITOS DE CULTO E SUA PRÁTICA NO MINISTÉRIO DOS PRIMEIROS LÍDERES BRASILEIROS

José Manuel da Conceição, ex-padre, evangelista itinerante e primeiro pastor protestante ordenado no Brasil.

Em 28 de junho de 1900 apareceu um artigo em ”O Puritano ”órgão oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil, intitulado “Rev. José Manuel da Conceição por A. B. Trajano”. O artigo diz o seguinte:

“Faz agora vinte e sete anos que o Rev. José Manuel da Conceição deixou este mundo de trabalho e tentações para ser recebido nas mansões celestiais por seu pai celestial. Este longo espaço de tempo não foi capaz de apagar a preciosa memória, as saudades dele que permanecem nos corações de todos os que o conheceram  e ouviram suas pregações e testemunharam seu admirável e verdadeiro ministério e labores a serviço de Deus.

Quando o ouvíamos  proclamar  o Evangelho e víamos como o evangelista se fazia acompanhar do exemplo, cumprindo fielmente a plenitude dos preceitos que pregava, isso produzia em nossas almas efeitos tão inspiradores, tão edificantes e duradouros que jamais podem ser esquecidos ou apagados de nossas memória.

Eu vi o Rev. José Manuel da Conceição nesta capital de São Paulo, em Lorena, em Sorocaba e na vila  de Cotia. Vi com admiração sua plena, humildade, sua sinceridade e sua total dedicação ao serviço de Jesus Cristo. Lembro ainda perfeitamente de tudo isto porque os trabalhos deste servo de Deus não eram normalmente os de um evangelista comum, mas um exemplo  vivo de um verdadeiro apóstolo da evangelização. Por isso, a lembrança dele, lembrança acompanhada de ternas saudades, permanece até hoje em mim como estímulo de inspiração para imitar sua dedicação até o último limite de minhas forças.” [1]

A.B. Trajano foi um dos primeiros quatro estudantes [2] para o ministério Presbiteriano no Brasil. Trajano era o mais velho dos quatro e também foi o último a morrer. Foi excelente aluno no curso teológico, sendo licenciado pelo Presbitério do Rio de Janeiro em 22 de agosto de 1870. Foi em seguida enviado para Borda da Mata [3], em Minas Gerais, para trabalhar como evangelista. Cinco anos após, em 10 de agosto de 1875, foi ordenado e colocado como pastor da igreja mãe, a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro que fora organizada por Simonton em 1862. Trajano serviu a esta igreja até 1893. Ele era pastor emérito desta igreja-mãe quando escreveu o citado artigo.

O tributo pessoal que Trajano prestou a memória  do ex- padre Conceição provavelmente poderia ser prestado por quaisquer dos demais pastores e evangelista brasileiros que tiveram algum contato com Conceição. O mesmo poderia ser dito  pelos missionários que aprenderam [4] a evangelizar o Brasil com ele. Ele deixou uma indelével marca em todo o protestantismo brasileiro.

Conceição não foi somente o primeiro padre no Brasil a deixar a Igreja Católica Romana mas, segundo Trajano, ele foi o primeiro brasileiro ilustre a enfrentar abertamente a tormenta de perseguições a romper com a Igreja Romana. Conceição contou sua vida num livrinho  intitulado “Profissão de Fé Evangélica pelo Padre José Manuel da Conceição”, livro agora esgotado e difícil de ser encontrado, mas que foi reimpresso seguidas vezes no “O Puritano” [5]. Conceição afirma que nasceu na cidade de São Paulo, em 15 de março de 1822, filho de um canteiro português que trabalhava em construções [6]. Foi criado e educado pelo padre José Francisco de Mendonça, irmão do avô de Conceição. Seu primeiro professor, diz ainda que conceição, foi  “o virtuoso Heliodoro de Vasconcelos” [7] cuja influência, somada às do padre com quem vivia, levou-o a escolher o sacerdócio. No entanto, aos dezoito começou a ler a Bíblia e a narrativa da criação do homem e da mulher no Gênesis produziu nele sérias dúvidas a respeito da doutrina Romana do celibato. Pouco tempo depois, uma conversa [8] que teve com um francês, seu professor de desenho, levou-o a posteriores dúvidas sobre os ensinos da Igreja. Seu professor passou pela frente do altar da Igreja sem tirar o chapéu e o zeloso Conceição  discutiu com ele quase no ponto de agredi-lo fisicamente. O francês tentou explicar-lhe que o amor ao próximo e a Deus eram mais importantes do que o zeloso cumprimento de regras exteriores. Esta conversa deixou profunda impressão na vida do jovem Conceição.

Outra experiência que conduziu seu pensamento na direção do protestantismo foi o contato que teve com ingleses e famílias protestantes européias numa vila próxima à Igreja de seu tio. Diz Conceição:

“Eu ia com freqüência a uma fundição de ferro em Ipanema ( em Sorocaba, na minha região) onde visitava a família Godwin cujo pai, Mr. Godwin, era superintendente da casa de máquinas. Eu me comovia profundamente ao observar o completo silêncio que lá reinava aos domingos. Era uma família inglesa. Mais tarde, quando eu fui admitido na comunidade eu vi a totalidade das famílias a ler a Bíblia e livros devocionais. Mais tarde eu visitei quase todas as famílias alemãs e em todas eu encontrei o mesmo quadro de devoção e religião. Comecei a pensar: quem sabe se estes estrangeiros têm tanta religião como nós, os brasileiros? Seria a religião deles igual à nossa? Ainda, quem sabe se eles são mais religiosos que nós porque são mais civilizados do que nós?” [9].

Vê-se de novo aqui a enorme influência dos imigrantes protestantes que preparam o caminho para as missões protestantes no Brasil.

Conceição faz também menção de sua amizade e dívida para com um médico liberal dinamarquês ou alemão [10] que praticava a medicina na mesma vila, com quem ele estudou o idioma alemão, assim como história e geografia, além de rudimentos de medicina. O Dr. Teodoro Langaard, além de ensinar alemão a Conceição, pô-lo em contato com a literatura alemã  sobre artes e medicina. Os conhecimentos de medicina, assim como a capacidade para ler os mais recentes  livros médicos em alemão, tornaram-se valiosos para Conceição quando, nos anos seguintes, como evangelista itinerante, tratava [11] do povo brasileiro do interior que não tinha acesso à assistência médica. Mais tarde ele escreve a respeito deste período de sua vida:

“Eu estava destinado ao sacerdócio, mas a leitura da Bíblia e os meus contatos com os protestantes tornaram-me um mau candidato e depois um pobre, muito pobre padre católico romano. Todos os outros padres, exceto o Bispo, chamavam-me de Padre Protestante.” [12]

Conceição afirmou que apesar dessas suas dificuldades a tolerância do Bispo e o fato de ser por natureza solitária, possibilitaram-no continuar os estudos para o sacerdócio. Tratava-se todavia de mais uma experiência perturbadora.

Conceição passou nos exames e foi para São Paulo para ser ordenado mas, momentos antes da cerimônia, foi avisado que não receberia a ordenação. Ele não tinha agido politicamente a fim de encontrar um padrinho nas áreas clericais. Foi, para ele, um grande choque descobrir o jogo político existente na Igreja. Esteve, por algum tempo, decidido a abandonar a carreira, mas foi persuadido a retornar e foi ordenado diácono em 29 de setembro de 1844, começando seu trabalho sacerdotal como assistente de seu tio-avô, o Padre Mendonça, em Sorocaba. A hierarquia da Igreja Romana não depositava inteira confiança nele, de maneira que ele veio a ser um padre encomendado, isto é,  sujeitos a remoções ao gosto das autoridades. Foi primeiro enviado para Limeira onde ministrou para imigrantes europeus aos quais falava em alemão, que era o idioma deles. Não cobrava nada pelo seus serviços e lhe recomendava que lessem a Bíblia. O bispado continuo transferindo-o de lugar para lugar na Província de São Paulo, mas em todos os lugares ele aconselhava o povo a ler a Bíblia e a confessar seus pecados diretamente a Deus. Os bispos, sem saberem, estavam permitindo que a futura Reforma brasileira fizesse itinerância em suas dioceses [13]. Alguns anos mais tarde, como pastor protestante, ele percorria as mesmas áreas pregando as Boas Novas que bem antes havia tentado proclamar. As autoridades católicas ficaram alarmadas e Conceição, sabendo que não mais poderia sustentar os dogmas e práticas da hierarquia romana, pediu demissão para deixar o ministério. O bispo, por seu turno, sugeriu uma outra solução: ele seria nomeado para o “vicariato de vara”, isto é, seria um representante do bispo servindo segundo as necessidades e desejos sem responsabilidades sacerdotais, Conceição aceitou a sugestão e comprou uma pequena fazenda perto de São João do Rio Claro, decidido a se tornar fazendeiro.

Blackford, visitando a região de Rio Claro, ouviu falar daquele estranho padre, antigo vigário da cidade, e decidiu ir vê-lo. O padre apreciou a visita  e logo foi a São Paulo a fim de conversar mais com Blackford. Dentro de alguns meses já tinha decidido renunciar ao sacerdócio católico romano e ligar-se à Igreja Presbiteriana. Em 23 de outubro de 1864, ele fez sua profissão de Fé na pequena sala que servia de igreja para o trabalho presbiteriano em São Paulo. Ele tinha então quarenta e dois anos de idade. Em 16 de dezembro do ano seguinte ele era ordenado pastor por Simonton, Blackford e Schneider que haviam, naquele dia, organizado um presbitério com o expresso propósito de ordenar Conceição.

A conversão de Conceição teve grande influência no  começo do protestantismo no interior do Brasil; primeiro, por chamar as atenções sobre os protestantes e, segundo, por estabelecer um modelo de evangelização e culto. Boanerges Ribeiro, que escreveu uma excelente biografia do ex-padre, diz:

“Mas foi a conversão do padre que chamou a atenção da capital provinciana para os cultos protestantes; entre os turbulentos estudantes de direito houve logo alguns que tomaram aquilo a sério…” [14]

Ele menciona alguns dos estudantes que começaram a aparecer na casa e nos cultos do missionário presbiteriano a fim de pedir informações. Entre eles estava Pedro Perestrello da câmara, que comprou uma Bíblia em inglês e levou alguns folhetos de evangelização. Mas, mais importante para a questão da pregação e do culto foi o modelo que Conceição estabeleceu e a influência que veio a Ter sobre os missionários e os jovens que entravam para o ministério, assim como sobre as pequenas congregações em formação ao longo de sua trilha pioneira.

Escreve Boanerges Ribeiro:

“José Manuel da Conceição lhe forneceu essas cabeças de ponte, abrindo para o nascente movimento protestante a província de São Paulo toda, e mais ao sul de Minas; supriu a falta de homens, entregando-se à constante itinêrancia que o esgotou; desfez a natural timidez daqueles estrangeiros pregadores, unindo com eles sua sorte.” [15].

A ordenação de Conceição anunciou ao alvorecer de um novo dia do culto evangélico no Brasil. Por meio século os imigrantes vinham calmamente realizando o culto familiar em suas casas e na “casas de oração”, tendo Kalley alargado um pouco o quadro ao convidar seus vizinhos para participarem do círculo familiar. Colportores tinham vendido Bíblias de vila em vila, mas agora o programa de evangelização intensiva de casa em casa estava começando. Deus levantara um homem, um ex-padre brasileiro, alguém que estendia os anseios de seus conterrâneos e de como ir ao encontro de suas necessidades. Nessa época não havia evangelismo de massa, conquanto houvesse reuniões ao ar livre nas praças das cidades e em campos abertos, mas agora o impulso principal era ir de casa em casa ao longo das estradas, de longas e longas estradas.

Escreve Ribeiro:

“Aproximava-se a hora do destino, em que a jovem igreja nacional criaria seu próprio método de desbravamento e propagação evangélica: essa luta árdua e exaustiva das estradas, de fazenda em fazenda; o contato pessoal e direto com a pessoa evangelizada; a oração de joelhos na salinha de chão batido e, sobretudo, o poder de um homem possuído do Espirito Santo e disposto a matar-se pregando a cada família em particular, de casa em casa, de indivíduo a indivíduo, de alma a alma. Não haveria nesse desbravamento os grandes lances oratórios que tanto encantam nossa mentalidade mestiça, nem o brilho dos pregadores selecionados e bem pagos: haveria a propagação de um fogo interior, que iluminava uma vida iluminaria quatro estradas do Brasil.” [16]

Em três anos este homem “transformou radicalmente o mapa da reforma no Brasil”. Com a Bíblia na mão e paz de Deus no coração ele ia de casa em casa ao longo das estradas do Brasil explicando a palavra de Deus, orando com o povo comunicando-lhe a convicção que o estava dizendo era a verdade. Em um dos primeiros lugares onde ele pregou, iniciando sua vida itinerante de São Francisco do Brasil, duzentas pessoas se reuniram para ouvi-lo, segundo seu relato. Ele enviou a Blackford uma lista de noventa nomes de pessoas convertidas, em sua maioria família por família. Regressou a São Paulo para apanhar um suplemento de Bíblias para pessoas que desejavam estudá-la por si mesmas. O relatório de Conceição comoveu o coração de um dos jovens estudantes de direito que havia comprado uma Bíblia do missionário presbiteriano e começado a freqüentar alguns cultos. Este jovem, Perestrello Barros de Carvalhosa, acompanhou Conceição a Sorocaba. Esta foi uma viagem histórica. Carvalhosa ficou tão encantado e convencido do evangelho que apressou-se a tornar a São Paulo onde fez sua profissão de fé, foi batizado, e começou sua longa carreira de colportor, estudante, pastor e o primeiro escritor de liturgia [17]  da Igreja Presbiteriana. Nessa viagem Conceição parou na casa de Sr. José Carlos de Campos, às margens do Rio Sorocaba. “Ó de casa! gritou à distância. Entrando na casa com a Bíblia na mão, abriu em João 3.16 e pediu licença para ler a respeito do grande amor de Deus por toda a humanidade e sua graciosa oferta de perdão pela fé somente. Depois, estendendo no chão de terra batida um lenço colorido, derramou seu coração em comovente oração pela família que tinha sido parte de sua paróquia quando ele era padre naquela cidade. O Sr José Carlos de Campos que, em anos passados, tinha se confessado a Conceição, ficou muito impressionado e ligou seu destino à nova fé doando terreno para construir uma igreja e, juntamente com sua numerosa família, tornou-se o núcleo de uma igreja [18] na comunidade de Votorantim, a algumas milhas de Sorocaba.

O modelo estava estabelecido. Conceição, com ou sem a companhia de algum jovem da igreja, ia pelas ruas das cidades e pelas estradas, de casa em casa, perguntando às pessoas se elas sabiam que eram pecadoras e dizendo-lhes que Deus as amava, pedindo permissão para ler a palavra de Deus, ajoelhando-se sobre o seu lenço colorido e orando pela sua fé e conversão. Quando possível enviava ao missionário Blackford, em São Paulo, lista de pessoas que se  tinham decidido por Cristo. O mais cedo possível, Blackford, ou um de seus auxiliares, estava na mesma estrada visitando as famílias  indicadas. Boanerges Ribeiro, cuidadoso e diligente biógrafo, acompanhou esse itinerário de vila em vila, de cidade em cidade, pelo espaço de alguns anos, traçando, ao mesmo tempo, o mapa das primeiras igrejas presbiterianas no interior do Brasil.

Nos anos imediatamente anteriores à sua conversão, Conceição pregou realmente a mensagem protestante da fé em Jesus Cristo, recusou pagamento por casamentos e funerais, tendo sua conduta preocupado tanto o bispo que este o manteve em constante mudança – nunca mais do que uns poucos anos em cada lugar. Estes mesmos lugares Conceição voltava agora a visitar, lugares estes que vieram a ser os futuros centros de novas igrejas presbiterianas: Sorocaba, Taubaté, Ubatuba, Brotas, São João do Rio Claro, Limeira, Campinas, Bragança, Atibaia etc. Três jovens [19] que vieram  a se tornar notáveis pastores da Igreja Presbiteriana acompanhavam fielmente agora a Conceição nestas viagens. O mais fiel companheiro era Carvalhosa, mas Miguel Torres e Antonio Pedro foram também com freqüência seus companheiros. Estes jovens estavam sendo preparados pelos missionários para serem pastores, mas o mais importante ensino lhes foi dado por Conceição na medida que compartilhavam com ele da poeira das estradas, da palavra de Deus, de sua fé, de suas lágrimas, vendo brotar a fé nos corações dos homens e das mulheres. Sofreram também com ele algumas esporádicas perseguições: cachorros, pedras, insultos, aprendendo a suportar tudo com regozijo.

Um mapa [20] mostrando as viagens deste moderno São Francisco revela a quase inacreditável história de suas jornadas. Nos quatro meses anteriores à reunião do presbitério, em julho de 1866, ele percorreu, a maior parte  pé, uma distância comparável à de Inverness a Londres [21], pregando, ensinando e curando. Nos tempos de estudante ele fizera valiosa amizade com um médico alemão em Sorocaba que lhe ensinou alemão e o pôs em contato em contato com os melhores livros de medicina nessa língua. Com este conhecimento Conceição tornou-se eficiente no tratamento das doenças comuns no Brasil. Assim, quando era convidado a pernoitar nalguma casa ele freqüentemente retribuía a hospitalidade cuidando de algum eventual doente da família. Isto fez com que ele se torna-se uma pessoa muito estimada por onde passava e firmasse um padrão de serviço e assistência que os missionários acompanharam. Numa terra de extensas áreas sem nenhuma espécie de assistência médica, os simples conhecimentos possuídos pela média dos missionários e pastores eram freqüentemente valiosos.

O primeiro biógrafo de Conceição, o Coronel Fausto de Souza, que lhe deu abrigo e cuidados na noite de sua morte, descreveu o método, a humildade e a dedicação dele durante os últimos anos de seu ministério itinerante:

“Chegando a um sítio, se ele resolvia a Ter aí alguma permanência, procurava alguma choça ou telheiro que lhe servisse de abrigo, às vezes mesmo edificado por suas mãos e coberto de ramos; se, porém, sua demora era passageira, ele pedia hospedagem em qualquer casa, preferindo as de modesta aparências; e antes de sair dela procurava dar um sinal do seu reconhecimento, servindo de enfermeiro a algum doente, consolando tristezas, ou mesmo prestando vários serviços humildes, como varrer, lavar, etc…

Sua frugalidade era tal, que com qualquer coisa se satisfazia durante o dia inteiro: uns ovos, leite, um pouco de farinha de milho ou de mandioca, ervas café e açúcar, constituíam quase sempre o seu alimento, Desses gêneros, os que lhe davam, agradecia com humildade; mas quando assim não acontecia, também não os pedia, mas comprava-os em pequena quantidade, à proporção que deles necessitava, porque conformando-se com a ordem dada por Jesus Cristo aos apóstolos, ele não possuía alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão (Mt 10.10) e o mesmo dinheiro que levava para o seu parco sustento, limitava-se a alguns parcos tostões.” [22]

Com tudo isto era Conceição um homem profundamente culto, lendo fluentemente português, alemão, francês e inglês, traduzindo constantemente alguma coisa em simples pedaços de papel. Ele observava e descrevia qualquer planta ou animal incomum que por acaso encontrasse em suas viagens e tomava notas a respeito da geografia e da geologia das regiões por onde viajava. Escreveu sermões, hinos e comentários enquanto ia e vinha. Enviava, de vez em quando, artigos para seus amigos e para a Imprensa Evangélica para serem publicados.

Conceição voltava dessas longas andanças completamente exausto, mas após alguns dias de descanso estava de novo na estrada. Na semana do Natal de 1873 Conceição viajava de volta ao Rio para um merecido descanso. todavia, não chegou ao seu destino. Forçado a uma baldeação ele teve que se abrigar por uma noite na estação. Suas roupas andrajosas e seus pés nus convenceram um policial de que se tratava de um vagabundo sendo, por isso, levado à prisão onde permaneceu três dias e três noites até que chegasse do Rio de Janeiro a confirmação de sua identidade. Quando posto em liberdade ele não tinha dinheiro suficiente para continuar a viagem de trem e partiu a pé. Na pequena vila de Irajá, cambaleante, caiu junto a um pequeno armazém. Um soldado da milícia estadual levou-o a uma enfermaria militar próxima onde o diretor, Major ( mais tarde Coronel) Fausto de Souza, supervisionou o tratamento do andarilho desconhecido.

Era véspera de Natal e o espírito da data provavelmente entro em cena porque os militares mudaram as roupas de Conceição, deram-lhe um banho e um prato de sopa, assim como os necessários cuidados médicos. Conceição  agradeceu-lhes e pediu para ser deixado a sós com Deus. Os sinos da vizinhança anunciavam a missa da meia-noite quando o espírito de Conceição deixava seu corpo para a morada final. O Major Fausto, naqueles poucos momentos de contato com Conceição, foi levado a ligar seu destino ao povo protestante. Ele escreveu uma biografia de Conceição, tornou-se franco defensor da fé evangélica e traduziu do francês um dos clássicos da literatura evangélica no Brasil. “Cristo é Tudo”. A fé evangélica encontrara os modelos realmente brasileiros. A próxima seção analisará a vida e ministério de um dos jovens mais chegados a Conceição que, através de uma longa existência no ministério protestante, procurou consolidar a obra além de evangelizar e veio a ser um notável líder da liturgia na Igreja Presbiteriana do Brasil.

NOTAS:

1. O Puritano, Ano II, Núm.56, 28 de junho de 1900, pág.1.

2. O primeiro a ser ordenado foi o ex-padre Conceição, mas ele não acompanhou nenhum curso teológico com os missionários. De fato, sua cultura e seu preparo eram provavelmente superiores aos dos missionários. Os outros três estudantes eram Antonio Pedro Cerqueira Leite, Miguel Gonçalves Torres e Modesto Perestrello Barros de Carvalhosa.

3. Esta pequena congregação das montanhas era filha da Igreja de Brotas. Alguns membros desta igreja mudaram-se para Borda da Mata e tornaram-se o núcleo de uma nova Igreja Presbiteriana naquela região.

4. Ver o registro de Blackford no seu Journal… Recordo a respeito desta experiência com Conceição nos meses da Missão que antecederam organização da Igreja de Brotas, assim como durante sua organização.

5. O Autor não teve acesso ao livro original, mas colheu notas de publicação em O Puritano. Há uma biografia em português, do Rev. Boanerges Ribeiro, intitulada O Padre Protestante, que é a principal fonte deste capítulo.

6. O Puritano, 14 de junho de 1900, pág. 1.

7. Loc. cit.

8. Loc. cit.

9. Ibid., pág.1 ss.

10. O Puritano, 14 de junho de 1900, Ano II, n.º 54.

11. Como os evangelista itinerante, Conceição servia amiúde de enfermeiro r médico para doentes nas casas onde se hospedava. Ele fazia isso em pagamento pela hospedagem, vez que habitualmente viajava sem dinheiro. Semelhante a esta é a história de Willis Robert Banks, no vale do Rio Juquiá.

12. O Puritano, 21 de junho de 1900, Ano II, nº 55. Continuação da reimpressão do livrinho de Conceição, “Profissão de Fé Protestante”, pág. 2.

13. Júlio Ferreira, HistóriaOp. cit.. vol. 1. Pág. 31

14. Boanerges Ribeiro, O Padre Protestante, Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, 1950, pág. 135.

15. Ibid., págs. 135-136.

16. Ibid., págs. 144-145.

17. Infra. Ver a seção seguinte a respeito de Carvalhosa.

18. Ainda hoje é umas das boas igrejas do Brasil, tendo o Autor pregado nela várias vezes. A família do Sr. José Carlos de Campos tornou-se proeminente na Igreja Presbiteriana, sendo uma de suas filhas a esposa de William Kerr e a mãe de uma nora do Autor. Membros desta família têm freqüentemente evocado para o Autor memórias da primeira visita de Conceição à casa de seu pai, depois de sua conversão.

19. Boanerges Ribeiro, op. cit., págs. 191, 164, 147, 151, 156, 187 etc

20. Vide apêndice. O mapa foi preparado por Boanerges Ribeiro, um dos biógrafos de Conceição.

21. O Autor apresentou esta obra em Edimburgo, Escócia. Daí o seu referencial à geografia conhecida pelos seus primeiros leitores (Nota do Tradutor).

22. Major Fausto de Souza, “Ex-Padre José Manuel da Conceição”, publicado na Imprensa Evangélica, fevereiro de 1884.

Transcrito aqui em São Paulo, 6 de Novembro de 2015.

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