Em janeiro de 1937 cheguei pela primeira vez no JMC, na casa do Reverendo Charles Roy Harper e Da. Evelina. A minha mãe foi comigo, menina de 17 anos, pois tinha de ver onde ia ficar e com quem, apesar de muito boas informações.
Descemos pulando do trem, que jogava brasinhas sobre nós e, como a estação era pequena, conforme o lugar pulávamos mais de 1 metro de altura. Logo começamos a andar no meio dos arbustos ao lado da estrada de ferro, em sentindo contrário ao do trem por 150 metros e dobramos à esquerda para passarmos por uma pinguela sobre um riacho mais ou menos 2 metros abaixo. Dali havia um fio do chão batido meio coberto pelo capim que ia direto à casa do Diretor, que era a casa mais à esquerda das três casas modernas que chamavam atenção destoando o ambiente bucólico.
Mr. Harper e Da. Evelina eram modelos de pessoas dedicadas ao trabalho de Deus. Nós conhecíamos alguns missionários americanos no Japão e os admirávamos. O casal era tão amável, simpático e inspirava confiança que minha mãe se rendeu prontamente. Mas nunca iria imaginar que minha vida se prolongaria por 10 anos no Conceição. O casal tinha dois filhos amáveis e educados: Annabel e Roysinho. A menina cursava o Graded School de São Paulo e Roysinho ficava estudando em casa. No fim de semana toda a família se reunia.
Ao lado dos Harper moravam o Reverendo Jesse Wyant e Da. Barbara que eram professores dedicados do JMC., com seu único filho Jack também muito educado. Ao lado deles moravam Reverendo João Euclydes e D. Abigail que estavam trabalhando na evangelização de Osasco. Eles eram brasileiros e muito dedicados.
A casa das moças ficava na ponta. Era simples e comprida, cercada de mato por todos os lados. A Diretora das moças era Da. Ana Rickli que mais tarde se casou com o Reverendo Mori que pastoreava em Paraguaçu Paulista. Ao entrarmos havia uma sala e logo ao lado a suíte da Diretora. Depois havia a sala de jantar e estudos, a cozinha com fogão à lenha e dispensa, e o corredor que comportava dois quartos de cada lado, um banheiro com duas pias, dois vasos e dois chuveiros frios pois não havia luz elétrica. Estudávamos com lampião, lamparina e vela quando, às vezes, acabava o querosene. O tanque para lavar a roupa era lá embaixo perto do “rio”. A água era bombeada duas vezes por dia e ia para o uso de todo o Conceição.
Havia no JMC professores que na maioria eram pastores e vinham de trem da Sorocabana. O reverendo Henrique Maurer e Da. Branca moravam no Conceição mas depois se mudaram para São Paulo. Ele foi um professor fiel e marcante em minha vida
E tive o privilégio de ser sua aluna durante muito tempo. Creio que o reverendo Henrique Temudo Lessa também vinha de trem para lecionar. Lembro-me do Reverendo Motta, Reverendo Fernando Buonaducce, professor Isaac Nicolau Salum, Professor Dario Bastose Da. Eunice que vieram morar no Conceição. Peço desculpas porque sei que havia mais pessoas mas não consigo me lembrar.
Da. Ana Rickli, Da. Nina Lima que era secretária do Mr. Harper e Da. Nena que era uma das professoras, moravam conosco.
Todos os dias antes do almoço, havia culto do outro lado da linha, o “lado dos rapazes”. Tocava o grande sino para o culto e lá estavam o dirigente, o organista e pregador e todos os alunos. Tudo era feito através de “escalas”, porém sempre havia visitantes e missionários americanos que geralmente nos traziam mensagens diferentes e abriam as nossas mentes intelectual e espiritualmente. Nós do JMC éramos muito privilegiados podendo ter contato com pessoas que nunca poderíamos conhecer, vindos de toda parte.
No grande refeitório dos rapazes almoçavam todos os professores, alunos, trabalhadores e visitantes. Havia uma “escala” de cozinha e, rapazes que nunca tinha entrado numa cozinha iam cozinhar para aprender. Imaginem uma semana de abóbora ou chuchu , mas o feijão e arroz não faltavam. As verduras vinham nadando em algo que parecia água e sal. Mas o fato era que a alimentação assim se tornava barata, ajudando ,muito nas despesas dos estudantes candidatos ao ministério.
Anos mais tarde apareceram cozinheira e família, o que melhorou bastante nosso menu vegetariano. O jantar era preparado em suas próprias casas. Na casa das moças também era feito com “escalas”. Era até divertido porém perdia-se muito tempo por causa do fogão à lenha.
Após o jantar, algumas vezes íamos ao outro lado da estação para comprar doces caseiros. Ali nós precisávamos escolher onde pisar e, com a luz do lampião distinguíamos uma figura idosa e rechonchuda que dizia para tudo “tana bona”.
Havia outro culto na casa das moças que também obedecia uma “escala” e, somente após tudo isso é que íamos estudar. E então ao final do dia tínhamos o momento que cada uma se recolhia para a leitura e oração. Era muito bom para aprendermos a dar tempo para o alimento espiritual.
Durante o ano nós estudávamos com livros muito velhos e em inglês, que no final do ano devolvíamos com o pequeno aluguel. Era mais um fator que facilitava as despesas em nossa vida estudantina. Os livros que usei foram de Álgebra, Geometria, Trigonometria, Psicologia, Grego e diversos clássicos. O resto era em português, o que nos dava alívio pois em inglês tínhamos que andar com um dicionário. Para mim a luta era maior porque nem português entendia bem já que havia chegado do Japão há oito anos e não conhecia a língua e os costumes sendo muito difícil ler em português. A Bíblia tinha que ser em japonês, mas lutei de verdade e Deus me ajudou. Tinha vontade, gostava de desafios e não perdia tempo.
No dia dos namorados, alguns rapazes vinham fazer serenata nas janelas da casa das moças. Cantavam para suas namoradas mas nós todas aproveitávamos para ouvir. Era muito lindo!
Aos sábados à noite havia reuniões dos grêmios para desenvolver o talento dos alunos. Havia grêmios religiosos e literários onde os alunos cantavam, declamavam poesias, liam artigos ou poemas de sua autoria, discutiam temas diversos, etc.
Em 1943 e 44, em plena Segunda Guerra Mundial, a situação foi ficando muito difícil para o eixo. Alemães, italianos e japoneses. Aqui no Brasil de repente começaram achar que o tintureiro da praça era espião do governo japonês. Havia perseguição: os agricultores japoneses perderam ferramentas de trabalho, os que carregavam Bíblia japonesa foram presos. Era época de completo absurdo, com mortes injustificáveis.
Quanto aos manuelinos, para tomar o trem da Sorocabana até o JMC era preciso gastar tempo e desgastar os nervos para tirar o salvo conduto. No entanto os fiscais tiravam o salvo conduto quando deveria somente dar o visto para ser usado três ou quatro vezes. Não me lembro bem se foi no fim de 1945 ou no começo de 1946 mas, de repente não precisava nada mais além da passagem para viajar no trem. O JMC era dirigido pelos missionários americanos mas nunca ouvi uma só palavra que fosse me desagradar e os alunos eram todos muito educados e ótimos colegas.
Os missionários presbiterianos americanos iam de sete em sete anos descansar e estudar para atualizar suas matérias nos Estado Unidos. Em 1946 o casal Harper viajou e D. Evelina deixou-me todas as matérias que lecionava e o coral para que prosseguisse. Deus me deu coragem e forças para desempenhar a função. Deus seja louvado! Ele foi misericordioso e carregou o meu fardo.
Da. Evelina Harper dedicava-se de corpo e alma à música com coral, ensino de órgão, de voz e de regência. Confesso que recebi sobremaneira a sua atenção e com isto nossa igreja Evangélica Holiness ganhou um coral durante muitos anos desde 1939. Isto se deu logo que aprendemos a cantar em duas e depois quatro vozes. Mais tarde quando Mr. Alberto Ream esteve na Igreja Metodista Central, D. Evelina me escolheu justamente com alguns outros para estudarmos regência com ele. E durante dois anos fomos junto com o casal Harper toas as segundas feiras à noite para São Paulo e voltávamos no trem das onze horas para o Conceição.
O coral do JMC era muito conhecido nas igrejas da cidade de São Paulo. Chamávamos atenção pois íamos cantar de uniforme o que era novidade na época. Nas férias D. Evelina formava o coral “”Caravana Evangélica Musical” que viajava pelo interior. As igrejas se responsabilizavam pela hospedagem. Após cantar dormíamos em casas de membros da igreja. Certa vez estive numa casa onde me deram uma lata de banha com água para o meu banho e a comida foi farinha de milho com leite. Agradeci a Deus e, por muito tempo não conseguia me lembrar daqueles irmãos sem me emocionar, pelo que fizeram para receber o coral em sua igreja.
O coral chegava quase sempre na hora de ensaiar rapidamente, cantar à noite e dormir para logo cedo reunir-se na estação para a próxima cidade. Este era o nosso programa. Nada de passeios, nada de restaurante. Cansávamos muito mas estávamos sempre satisfeitos tendo convicção de estar fazendo tudo para o crescimento da obra de Deus. Era muita alegria também! Fomos algumas vezes à cadeia e à algumas emissoras de rádio no interior. Era novidade ouvir-se algo religioso evangelístico em rádio, mas Mr. Harper estava sempre presente e ajudava o coral em todos os sentidos, além de pregar e cantar. Deus estava com o casal e o coral.
Para mim o JMC foi uma bênção de Deus. Eu que estava feliz quando estava estudando me sentia no lugar certo. No último ano de minha permanência o Conceição já estava bem diferente, com luz elétrica nas casas, chuveiro quente, fogão à gás, ponte de madeira e outros melhoramentos.
Recebi muita atenção, muito favor, muita bondade e carinho. Tiveram paciência com uma japonesa que nada conhecia sobre a vida brasileira. Muito obrigado por tudo, meu Deus!
Transcrito aqui em São Paulo, 6 de Novembro de 2015.